domingo, 8 de março de 2009


“O PELÉ, CALADO, É UM POETA...”

Imagino que muitos tenham lido, nas páginas amarelas de uma das últimas edições de “Veja”, a entrevista com o Pelé. E gostaria de conhecer a reação de cada um, ou melhor, sua interpretação.

A minha se resume na frase lapidar do “baixinho” Romário, pronunciada há algum tempo num brilhante improviso à beira do gramado:
“O Pelé, calado, é um poeta...”
Aliás, em termos de agudeza crítica e senso de humor, esse ‘Baixinho’ dá um banho em muita gente boa...

Não nego a importância do Pelé como jogador de futebol; seria injustiça e até ingratidão. Ele, de fato, contribuiu de maneira substancial para divulgar a imagem do Brasil no mundo. Mas cá entre nós, a julgar pelo nível médio de suas declarações, não tenho a menor curiosidade em assistir a uma de suas ‘palestras’. Ele acha, até, que poderia ser um grande presidente da república, mas não quer (‘ser político...’).

Outro detalhe que me espanta é sua irritante mania de se apresentar como duas pessoas – o Edson e o Pelé. No começo, até ficou engraçadinho. A turma absorveu sem maiores comentários. Mas já encheu. O homem se divide em dois com a maior cara-de-pau. E um inocenta ou enaltece o outro – “O Pelé nunca esteve envolvido em escândalos...”, mas o Edson deu suas mancadas...? Ou vice-versa?

É incrível, também, a sobranceria com que ele tripudia sobre a imagem dos que ousaram fazer-lhe sombra: “O Romário diz ter feito 1000 gols, mas não chegou aos meus 1283, além de tê-los contado desde o juvenil e até o infantil”; “O que interessa é o que o futebol e o Pelé trouxeram de importante para o mundo”; “Os jovens tem de saber o valor que o Brasil tem e o Pelé tem”; “Todo mundo sabe que o Pelé foi melhor que o Maradona, pois cabeceava melhor e chutava com as duas pernas”; “O Maradona foi um grande jogador, que, infelizmente, se envolveu com drogas”; “O brasileiro me ama, me adora, mas tem cisma com quem faz sucesso”; “Há jornalistas que inventam algo contra o Pelé, mas como eu sou o Edson, amigo do Pelé desde criança, não ligo”; “Fui convidado para a posse do Obama, mas tinha de gravar um comercial e não deu pra ir. Quando o Obama estiver mais calmo, passo lá pra tomar um café, como fiz com o Kennedy, com o Nixon e com o Clinton. Outro dia, me disseram que o Obama ficou mais conhecido que o Pelé. Aí, brinquei: ‘Por enquanto’! Em quatro anos, ele pode até ficar mais famoso, mas eu continuarei a ser rei. Já ouvi até que o Pelé é mais famoso que Jesus Cristo. Não sou eu que digo isso, viu? Ouvi de um jornalista japonês”.
“Aliás, eu sou Cavaleiro do Império Britânico, título que ganhei da rainha da Inglaterra”.
“O Pelé é imortal; o Edson, não. É difícil para o Edson carregar a fama do Pelé. É um desafio minuto a minuto, porque as tentações são muitas. O Edson é humano e sabe que é o equilíbrio e a base do Pelé; os dois sabem o quanto é importante não decepcionar o povo brasileiro”.

Quanta modéstia!
Assim, com tudo o que ficou explícito e implícito nessa entrevista, a conclusão inequívoca a que eu chego – e espero que o leitor também – é que o Romário superou-se quando disse:
“O Pelé, calado, é um poeta...”
Grande “Baixinho” Romário!

Mario Gentil Costa






















segunda-feira, 2 de março de 2009


“PAPAGAIO VELHO...”

Quando a ocasião era propícia, meu saudoso avô, que era um crítico mordaz, exclamava, lá do alto de suas décadas: “Papagaio velho não aprende língua...”. O que ele queria dizer com isso? Que a idade avançada dificulta ou impede a aquisição de novos conhecimentos, reflexos e competências. Hoje – e cada vez mais – estou me convencendo de que ele tinha razão.

Lembro-me de como me foi fácil aprender as quatro operações, ler, escrever e datilografar. A dirigir, então, nem se fala. Claro que o interesse ajudou muito, mas só de ter prestado alguma atenção, já sabia quase tudo quando me sentei à direção do Hudson do meu cunhado. O carro nem sacudiu. Eu tinha 16 anos.

Em contrapartida, meu sogro, que já tinha cabelos brancos quando adquiriu, em 1961, sua primeira viatura – um Morris Oxford 54 – nunca foi capaz de um desempenho além de razoável nessa mesma boléia. Não consigo esquecer sua falsa expressão de conformidade com as barbeiragens que se sucediam como se fossem coisa normal – aquele biquinho de quem está prazerosamente assobiando uma modinha quase inaudível e sem melodia definida. “Fi-fi-fó-fó-fi-fi-fó-fó...” – e lá ia ele, cenhos contraídos e olhar atento, pescoço esticado à frente, quase “cheirando o pára-brisa”, como fazem, pelas ruas de hoje, certas velhotas barbeiras. A troca de marchas não obedecia a lógica - era uma confusão desnecessária, inconseqüente e repetitiva. A velocidade, irritantemente lenta e aos solavancos. Coitado! Depois, vieram um Fiat 147 – outro “cacareco” que logo quebrou – e um Dauphine 61 que não incomodou. Em 68, comprou um Fusca 1300 zero e, mais tarde, um Corcel 76 com que encerrou a carreira e passou a ser meu passageiro:
- Vou parar de dirigir. Não sou mais criança. O trânsito está cada vez pior e tenho medo de atropelar alguém.
Consciência e autocrítica admiráveis! Eu, que aprendi na hora certa, continuo dirigindo com a mesma desenvoltura, mas, com a "maturidade"(?), cada vez tomo mais cuidados. Ainda assim, noto que meus reflexos já não são os de outrora.

Todo esse longo intróito, entretanto, veio a propósito de outro assunto: os computadores e a internet. A quantidade de amigos da minha faixa etária que fogem ao desafio dessa convivência com a chamada modernidade não é pequena. Outro dia, topei com um, de fora, que me pediu o endereço para correspondência. Quando lhe ofereçi o e-mail, veio o protesto:
- Não! Isso, não!! Eu quero teu endereço postal.
- Pra quê? – indaguei.
- Ora, pra trocarmos algumas cartas! Pra que mais seria?
- Cartas? Isso não se usa mais, cara! Hoje é tudo pela internet.
- Então, deixa. Eu não me acostumo com isso.

É a confissão tácita da derrota, da desistência e do anacronismo. Uma confissão que limita, que separa, que dificulta a convivência de certos paleontossauros com os contemporâneos mais presunçosos e mais afoitos.
Eu, pelo menos – e à custa de enorme esforço – faço o possível para conviver com esses gigantescos saltos da tecnologia. Mas não deixo de invejar, e cada vez mais, a rapidez com que minha neta, que já nasceu nesse mundo virtual, domina, até com irônica displicência, os segredos dessas máquinas diabólicas – celulares incluídos - que parecem fazer milagres, mas, ciosamente, teimam em esconder dos "mais rodados" suas virtudes e intimidades para prodigalizá-las somente aos jovens iniciados.
Há habilidades que, definitivamente, estão fora do meu alcance, e eu tenho de me conformar. E não adianta insistir – será motivo apenas de vexames e frustrações.

Outro dia, ela estava almoçando conosco, e aproveitei para pedir-lhe que restaurasse meu catálogo de endereços que, simplesmente, havia sumido da tela do OutLook. Devo ter tocado em alguma tecla misteriosa. Não deu outra: ela veio, fez uma manobra rápida, e lá estava o danado de volta.
- O que tu fizeste? Como?
- Tu não viste, vô?
- Não deu! Foi depressa demais! – reagi, humilhado.
Ela repetiu. Eu não entendi e pedi que me ensinasse com calma. Foi visível sua impaciência ao me atender. Só faltou me dizer:
- “Vô, como tu és burro!”
Minha esposa, avó solidária, logo saiu em sua defesa:
- Ela jamais te diria um absurdo desses.

Mas que pensou, pensou. Isso, eu garanto!
E, de imediato, me transportei ao meu querido avô, quando exclamava, do alto de suas décadas:
“Papagaio velho? Não aprende língua!”

Mario Gentil Costa

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009



BRASIL BARULHENTO
(Entrevista: poluição sonora urbana)

Este artigo é o excerto de uma entrevista dada em 1993, e que não foi publicada com a justificativa, por parte do editor do jornal, de “escassez de espaço”... Passados tantos anos, como o assunto é cada vez mais pertinente e prioritário, resolvi publicá-la eu mesmo.
Só sinto não ter o mesmo número de leitores.

Não há dúvidas de que "o Brasil ainda engatinha em matéria de combate à poluição sonora". Alguns anos atrás, o Rio de Janeiro detinha o "honroso" título de “cidade mais barulhenta do mundo”. O ruído do tráfego, em horas de pique, nas imediações do túnel que liga Botafogo a Copacabana, atingia níveis insuportáveis para os moradores dos prédios que marginavam a avenida de acesso. Hoje, com o crescimento vertiginoso da população e do número de veículos, a situação deve ter se tornado ainda pior.

Não conheço nenhum trabalho científico que tenha estabelecido, nesse aspecto, comparações entre as principais capitais brasileiras, mas suponho que, hoje, nada se compare a São Paulo. A meu ver, a própria topografia dessa cidade favorece a reflexão do som naquela "selva de concreto" em que se transformou. No Rio, pelo menos, há a constante presença do mar para onde o ruído escapa e, até certo ponto, se desvanece.
De uma forma ou de outra, o que diferencia as capitais brasileiras das do resto do mundo é, justamente, a falta de educação do motorista nacional, na minha opinião, o maior "buzinador" do planeta. Brasileiro não pode ver uma buzina. Basta uma momentânea interrupção no trafego, e já aparece, atrás da gente, um “nervosinho” para dar início ao que eu chamaria de "reação de estupidez em cadeia". E é nessas horas que o guarda deveria puxar o seu talonário de multa. Talvez fosse a maneira de coibir esse abuso e educar esses poluidores.
Afora esse aspecto, todavia, não me parece, que Florianópolis seja, proporcionalmente, mais barulhenta do que outras capitais do seu porte. Além de não ser uma cidade industrial, conta, felizmente, com a bênção das baías norte e sul para amortecer o ruído.
Aliás, como conceito geral, vale dizer que, do ponto de vista de saúde pública, no sentido individual, não é o ruído da cidade que causa o maior prejuízo, ao menos no que diz respeito à perda da audição. Não acredito que isso possa deixar alguém surdo, no exato sentido da palavra. A rigor, por mais alto que seja seu nível, sempre se tratará de um fenômeno temporário ou intermitente, que dura segundos ou minutos, como no caso dos exemplos citados. O que causa dano auditivo real e permanente é a continuidade do ruído a que o ser humano se expõe. Além do seu nível em decibéis, é claro.

O ruído urbano excessivo afeta, isso sim, o psiquismo da coletividade. Isso a que chamamos de "progresso" obriga o cidadão a conviver com neurotizantes descargas abertas, marteladas de bate-estacas, britadeiras de asfalto e misturadoras de concreto, buzinas e apitos de toda sorte.

Como se sabe, o ouvido humano suporta, sem danos, ruídos que não ultrapassem 85 decibéis. Alguns pesquisadores são ainda mais rigorosos, estabelecendo o limite em 80 dB. Acima disso, dependendo de fatores individuais, haverá, cedo ou tarde, lesão irreversível. É claro que, com o barulho ambiente, sobe o número de pessoas com problemas precoces, cujas verdadeiras causas estão, entretanto, centradas em certas atividades profissionais.

Os mais atingidos são os operadores de máquinas barulhentas em ambientes confinados, nas oficinas de tecelagem, nas usinas metalúrgicas, nas serralherias, nas marcenarias, nos estaleiros da construção naval, entre os funcionários que lidam nas proximidades de turbinas de aviões, seja na fábrica, seja nos aeroportos. Nesses ambientes, o nível de ruído ultrapassa em muito o aceitável, alcançando, às vezes, cerca de 130 decibéis. Esses profissionais deveriam ser obrigados a usar protetores nos ouvidos. E na verdade o são, mas muitos não usam, ou porque acham incômodo, ou porque a vigilância é, muitas vezes, negligente.

Os empregados em boates de "rock" e outras baladas, que se expõem diariamente ao ruído amplificado e ensurdecedor dos instrumentos de percussão que reflete nas paredes, são algumas das modernas vítimas da poluição sonora veiculadora da surdez, que, sem dúvida, também atinge – em menor grau, é verdade – os freqüentadores habituais.

Na minha experiência, que já vai longa, os jovens que freqüentam esses lugares confessam sistematicamente o zumbido nos ouvidos quando voltam para casa de madrugada. Esse é o primeiro sinal de dano auditivo, que, repetido, como é o caso dos garções que trabalham todas as noites, e sobretudo dos músicos, que ficam mais perto das fontes de ruído, certamente redundará em perda auditiva progressiva e irreversível.
Num segundo estágio, a pessoa começa a notar que deixa de entender certas palavras no correr de um conversação normal. A essa altura, o zumbido, que era passageiro, torna-se constante e de tonalidade aguda, mas ainda é reversível, se for removida a causa. Caso contrário, sobrevirá o terceiro estágio, já de perda auditiva irreversível para certos tipos de som e progressivo prejuízo no rendimento da conversação, aquele em que o paciente se queixa de que escuta mas não entende tudo o que escuta, como se o interlocutor estivesse falando numa língua estranha. O quarto estágio é o da surdez manifesta e progressiva, podendo alcançar o nível que chamamos de surdez profunda.

Já tive, no consultório, casos de deficiência auditiva em jovens que freqüentam tais ambientes. Aliás, esta é uma ótima oportunidade para alertar os frequentadores dos chamados 'trios-elétricos', alguns dos quais ultrapassam os 115 dB. O mesmo vale para os usuários de fones de ouvido acoplados a essas poderosas fontes geradoras de música de percussão, eufemisticamente chamadas de MP3. Se não quiserem ficar surdos aos quarenta anos de idade, ou antes disso, tratem de "curtir o som" reduzindo o volume. Caso contrário, não há remédio: envelhecerão totalmente surdos. Esta é uma verdade definitiva, um axioma.

É fato que nem todas as pessoas reagem de forma semelhante ao estresse do ruído. Há as que suportam um pouco mais, sem maiores conseqüências. Mas acima de certos limites, ninguém escapa. É inexorável. Dir-se-ia que quanto maior a idade, maior o dano. A existência concomitante de fatores predisponentes, como hipertensão arterial, aterosclerose, diabetes – doenças essas que, direta ou indiretamente, comprometem a circulação e a oxigenação dos tecidos e das células – acelera indiscutivelmente o processo. Determinado grau de fadiga crônica, maus hábitos higiênico-alimentares, tensões e sobrecargas de um modo geral, uso de drogas, sejam quais forem, igualmente contribuem para o agravamento do prognóstico.

Vejam só: num raciocínio comparativo, os olhos foram feitos para a luz; e os ouvidos, para o som. Qual é a maior fonte de luz? O Sol. Pois bem, se ficarmos olhando diretamente para ele sem proteção, ficaremos cegos. Ambos, luz e som, são formas de energia. Todos sabem disso. Da mesma forma, ficaremos surdos se não nos protegermos contra o excesso de som. Isso é óbvio! E tão fácil entender!... Mas tão poucos acreditam!...

Os jovens, principalmente, que se julgam imunes, chegam a esboçar aquele sorrisinho de descrença, como se nós, médicos, estivéssemos contando lorotas. Aliás, esta que aí está é a geração mais barulhenta que já pisou o planeta. Só imagino como será a próxima...

Além da perda auditiva propriamente dita, que é o dano mais imediato, a poluição sonora agride o corpo humano como um todo, alterando seu equilíbrio orgânico – a "homeostase" – e atuando diretamente sobre o sistema nervoso central e a circulação sangüínea, provocando vaso-constrição e favorecendo o aumento da pressão arterial, através de uma maior descarga de adrenalina circulante. Taquicardia, alterações do ritmo intestinal, dores de cabeça dos mais diversos tipos, ansiedade, irritabilidade, insônia, baixa do rendimento intelectual, fadiga no trabalho e conseqüente aumento do risco de acidentes no exercício de funções que exijam reflexos rápidos e imediatos.

As crianças, da mesma forma que os adultos, estão sujeitas a estresses semelhantes, que repercutem mais sob a forma de irritabilidade, agressividade, inquietude, sono irregular, distúrbios do apetite e do funcionamento intestinal. Na medida em que o ruído ultrapasse certos limites, pode-se prever, até mesmo, déficit ponderal e estatural, retardo no rendimento escolar e dificuldades de relacionamento social e doméstico.

Existem leis e normas técnicas para a redução do ruído; só que nem sempre são cumpridas por tornarem o investimento inviável em termos de custo operacional. E nós sabemos que, infelizmente, no mundo moderno, o que preside todas as iniciativas comerciais e industriais é o famigerado binômio custo/benefício (ou investimento/retorno), sem o qual nada se faz.
Em suma, o objetivo desta conversa é chamar a atenção dos pais e interessados. Do ponto de vista técnico, o Brasil conta com engenheiros especialistas em problemas acústicos e médicos capacitados a desenvolver a profilaxia dos danos causados pelo ruído. A propósito, certas máquinas de grande porte produzem tanto ruído, que sua manipulação exige controle remoto, ficando o operador protegido em cabinas a prova de som. Há leis que obrigam a uma interrupção de dez minutos a cada hora de trabalho, com a finalidade de descansar o ouvido e quebrar a continuidade do estresse sonoro. Outras regulamentam proporcionalmente a carga horária. Mas não creio que sejam cumpridas à risca. Pelo menos no Brasil, onde, a começar de cima, não se leva quase nada a sério...

É bem verdade que não se trata de uma doença de conseqüências fatais diretas. Pelo menos, não tenho conhecimento de nenhum caso de morte por poluição sonora. Mas é admissível que, além da surdez profunda, as outras alterações orgânicas advindas do excesso de ruído, levando ao estresse crônico, predisponham o indivíduo à aquisição de males imprevisíveis cujo resultado, a longo prazo, poderá reduzir sua perspectiva de vida, por torná-lo mais susceptível a uma variada gama de doenças crônicas incuráveis. Dessa forma, sim... a poluição sonora pode matar...

Mario Gentil Costa
magenco@terra.com.br

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009



OS MELHORES ESCRITORES

Dias atrás, numa rodinha, eu criticava a baixa qualidade do texto de certos escritores brasileiros – cujos nomes já citei outrora e prefiro não repetir aqui para evitar outros mal-entendidos – quando fui aparteado por um amigo que escreve muito bem e que, para minha surpresa, saiu com uma pergunta simples, mas aparentemente arrasadora:
- Eles vendem?

Não respondi de imediato, pois todos sabem que sim, sobretudo um deles, mas contrargumentei com a indagação genérica:
- Quer dizer que, no teu modo de ver, bom é tudo aquilo que vende bem?
- Eu me referia a escritores... – foi sua saída pela tangente.

Mas era tarde; a querela estava armada. O fato é que a maioria acostumou-se a consumir o que seja badalado na mídia. E isso vale pra tudo. “Bom é o que vende mais”, mesmo que a experiência mostre que o produto é, no máximo, igual aos concorrentes, quando não é pior. Dá-se que o consumidor comum, que é a massa, não tem sem senso crítico. Compra qualquer coisa, até mesmo “aquilo” em pacote..., desde que “bem-embalado”.

Conta-se que, anos atrás, a cúpula da Coca-Cola americana, assustada com o crescimento exponencial da verba destinada à publicidade, e convencida da inabalável e sistemática preferência do povo por sua marca sempre vencedora, decidiu reduzi-la à metade. A tese defendida era a de que sua imagem estava indelevelmente impregnada no subconsciente da maioria – o chamado “efeito subliminar” – e que as vendas não cairiam. Conta-se que o resultado da experiência foi desastroso, e que, em pouco tempo, a Pepsi-Cola, sua maior concorrente, estava vendendo mais. Conclusão: você e mais uns poucos, se fosse o caso, continuariam a beber Coca-Cola – que eu não bebo porque não gosto – mas a massa, não; ela vai na onda, como um imenso rebanho de ovelhas estúpidas.
É ela que enche as igrejas dizimistas e, mesmo à custa de imenso sacrifício, enche as burras do seu ávido pastor... Ela é a mesma que dá o ibope à novela das oito, a ponto de adiar compromissos mais proveitosos para não perder um só capítulo e, nos intermináveis intervalos, absorve passivamente os efeitos emburrecedores da propaganda maciça.

Mas o objetivo deste artigo era discutir escritores, e eu, sem querer, derivei por colaterais. Poderia, perfeitamente, ter contraposto que o Brasil tem grandes escritores desconhecidos. Aqui mesmo em Floripa, eu conheço um que é dono de um texto soberbo, tão primoroso que, na melhor das hipóteses, pouquíssimos dos atuais usuários dos fardões da ABL seriam capazes de igualar.
- E quem é ele? – indagaria o meu amigo.
- Não tenho autorização para citar-lhe o nome - só em off -, mas lhe asseguro que é homem de vasta cultura, fala cinco idiomas, já leu os clássicos maiores e menores, conhece boa parte do mundo e, apesar disso, vende pouquíssimo; vive, na leal companhia de seus cães, quase ignorado num tugúrio no interior da Ilha de Santa Catarina.
- E como se explica isso? – insistiria o meu amigo, assombrado.
- Não sei responder. Timidez insuperável? Modéstia excessiva? Incerteza? Exagero de autocrítica? Má sorte? Falta de apoio editorial? Só sei que isso prova a minha tese: nem todos os famosos, os que vendem ‘horrores’, os que figuram eternamente nas listas semanais da Veja, são os melhores...

Conheço um outro, também de Floripa, que, por mero impulso, desejoso de estimular nas pessoas comuns o hábito da leitura – único, se não um dos únicos veículos de aprimoramento cultural de uma sociedade – arca com as despesas de edição de seus inúmeros livros e depois, tímida e humildemente, saí com alguns volumes debaixo do braço, ávido por dá-los de presente, com dedicatória e tudo, a quem mostrar por eles a mínima curiosidade.

Escritor digno desse título, portanto, não é sempre o que vende mais; é o que escreve melhor, com mais conteúdo, criatividade, estilo e correção, e não faz da venda pura e simples sua meta de vida ou, menos ainda, tira daí a medida do seu valor...

Mario Gentil Costa
magenco@terra.com.br

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

“PROFILAXIA DA APORRINHAÇÃO”

A violência no trânsito é crescente e amedrontadora. Por qualquer motivo, mesmo o mais banal, pessoas aparentemente serenas estão se envolvendo em discussões acaloradas que, não raro, levam às vias de fato. Li hoje, num jornal, mais uma nota que atesta o estado de tensão que reina nas estradas e nas cidades. Segundo entendi, tudo aconteceu em cima de uma ponte estreita em que só poderia passar um veículo de cada vez. Pois bem: dois motoristas, trafegando em sentido contrário, chegaram ao mesmo tempo a cada cabeceira e forçosamente bateriam de frente. Tiveram de frear, e o choque não ocorreu. Mas sobreveio o tira-teima; nenhum dos dois cedia e se dispunha a voltar atrás. A querela esquentou os ânimos, e um dos protagonistas, cujo pavio era mais curto, tomou as alegações do outro como ofensas e, sacando um revólver, matou-o com um tiro na cabeça.

A que ponto chegamos, gente? A vida vale tão pouco? Por que está acontecendo isso? Seria assim no tempo dos nossos pais?

Por coincidência, em seguida, recebi de uma amiga um e-mail dando conta de um episódio intitulado “Lei do caminhão do Lixo”, vazado mais ou menos nos seguintes termos: “Chamei um táxi e fomos direto para o aeroporto. Estávamos na faixa certa, quando, de repente, um carro saiu do estacionamento. O motorista do táxi pisou no freio, desviou, e escapamos por um triz! Mas enfurecido, o outro buzinou com raiva, saltou e começou a gritar impropérios e a fazer gestos obscenos. Felizmente, meu guia, esboçando um sorriso, não lhe deu atenção. Limitou-se a fazer, com a mão para fora da janela, um sinal de concordância com o polegar esticado para cima.

Encantada com sua bonomia, não me contive e lhe perguntei:
- Por que fez isto? O cara quase arruinou seu carro e, mais um pouquinho, nos mandaria para o hospital!
- Apenas obedeci à “Lei do Caminhão de Lixo", senhora.

Diante da minha visível perplexidade, ele prosseguiu:
- Muitas pessoas são como caçambas carregadas de lixo. Andam por ai, cheias de frustrações, de raivas e de desapontamentos. E à medida que seus acúmulos vão crescendo, elas precisam descarregar em alguém. Eu, simplesmente, decidi que não vou deixá-las descarregarem em mim. Apenas me limito a sorrir e a acenar amigavelmente. Prefiro ignorar. Descobri que o prejuízo da reação é enorme. Minha saúde vale muito mais. E eu a aconselho a fazer o mesmo. Não se deixe levar por impulsos irrefletidos. Isso se aplica a todas as situações; em casa, no trabalho, nas ruas... Só traz lucros...

Eu o fixava, ainda surpresa, e ele arrematou:
- É verdade - as pessoas felizes não deixam que esse lixo emporcalhe seu dia. A jornada é muito curta para se levantar de manhã com remorsos por gestos e atitudes impensadas da véspera. Ame quem a trata bem e esqueça quem a trata mal. A vida é dez por cento o que se faz dela e noventa por cento a maneira como se aprende a levá-la. O segredo está em não deixá-la encher-se de lixo...”

Essa sábia lição, vinda de um modesto motorista de táxi, é exemplar para todos nós, e eu a aplaudo sem restrições. No caso específico, além de preservar-se do estresse, ele evitou o que uma séria discussão poderia ocasionar e cujas conseqüências imprevisíveis, com os ânimos exaltados e respectivos pavios acesos, poderiam ser trágicas, como se tem visto na prática, aqui ou acolá.

Eu, sempre que posso, e com critérios cada vez mais elásticos – que exercitei à custa de autodomínio e disciplina – tenho procurado reagir assim, com um mero sorriso condescendente e superior. Não vale a pena sair dando-murros-em-ponta-de-faca...

A estupidez que nos rodeia é majoritária e insuperável... e está começando a atuar cada vez mais cedo nas pessoas, produto de uma lacuna que o brasileiro, com exceções, já traz do berço e que daria assunto para uma bela tese de mestrado em psicologia do comportamento e da convivência social – aquela qualidade basal que deveria ser natural e congênita: educação.

Mario Gentil Costa

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

UM GÊNIO HUMILDE E DESCONHECIDO

"Há muitas histórias de operários (brasileiros) parecidas com esta." – Frase da autoria de um amigo de São Paulo, Fernando Portela, ao referir-se à matéria contida num clipe em que um palestrante exaltava o estímulo à criatividade espontânea como uma alternativa barata na solução de problemas complexos dentro de uma empresa. Pegando o gancho, resolvi contar-lhes uma, vivida por mim ao longo dos últimos 30 anos. Conheço um mecânico que tenho na conta de um gênio. Seu nome é José Crepaldi, neto de italianos. É a personificação da inteligência criativa misturada à modéstia.
Durante nosso relacionamento cliente-profissional, vi-o resolver, com extrema simplicidade, uma série de enigmas que o pessoal das concessionárias só resolvia com a confortável e lucrativa troca-de-peças. Foram inúmeras as ocasiões em que sua competência foi posta à prova, e suas idéias sempre deram certo. Houve dias, mesmo, em que ele me deixou abismado com seus “ovos-de-colombo”.
Infelizmente, o Crepaldi – “Crepa”, para os mais íntimos – aposentou-se e, desde então, me vejo perdido toda vez que surge alguma falha em meu carro. Como ficamos amigos, consulto-o pelo telefone para conferir os diagnósticos alheios. Ele passou a ser meu assessor plenipotenciário para assuntos de mecânica. Sua palavra, pra mim, vale mais que um dogma; é um axioma.
Certa vez, estupefato com o assombroso resultado de uma de suas sugestões, resolvi puxar assunto:
- Crepaldi, seu pai era italiano?
- Não. Meu avô – Giuseppe. Chegou aqui em 1900. Era um grande marceneiro; produzia móveis entalhados e torneados.

- Você aprendeu alguma coisa com ele?
- Não. Ele já estava velho e doente. Falava um português muito arrevesado, misturado ao italiano.
- Você fala italiano?

- Quem sou eu, doutor? Mal falo português.
- Mas você herdou seu talento..., na carga genética...
- Talento? Eu? Nunca tive nenhum!... Tanto que não passei do que sou. Não sei fazer mais nada...

- Pois fique sabendo que você é um gênio desaproveitado.
Eu nunca vi um mecânico tão imaginativo. Você tem soluções originais. Chega a inventar peças... Você cria, improvisa e simplifica...
- Ah, doutor, isso vem da prática.
- Não vem, não. Isso vem do cérebro. Do talento. Por isso, você tem respostas que os outros não têm...
- Ah, sei lá. Eu não entendo de cérebro.
De repente, sem saber por que, perguntei-lhe:
- Seu avô Giuseppe veio de que cidade?
- De Módena, a mesma cidade do Luciano Pavarotti.

Levei um susto com a informação, e uma imediata inferência me ocorreu: Módena também é a sede da Ferrari! E se, por qualquer razão, o nono Giuseppe Crepaldi não tivesse tido a idéia de vir para o Brasil – e seu filho também não – o meu amigo José Crepaldi, humilde e desconhecido mecânico brasileiro que nem reconhece ou faz idéia da imensidão do seu valor, poderia ser hoje uma figura de destaque, talvez um consultor, um chefe-mecânico nos boxes e nas linhas de montagem dos bólidos vermelhos da Ferrari.
José Crepaldi! Um gênio humilde e desconhecido, legítimo embaixador da numerosa colônia italiana que tanto contribuiu para a grandeza do Brasil.

Mario Gentil Costa

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

ESTRATÉGIA PARA A BOA CONVIVÊNCIA

Na convivência do dia-a-dia, seja no trabalho, seja no laser, acabamos, todos – ou quase todos – fazendo parte de rodinhas compostas de cabeças heterogêneas no que toca a crenças, gostos e preferências, e houve um tempo em que, em função de tais desigualdades, envolvi-me em veementes discussões.
Convicto do acerto de minhas posturas acerca disso ou daquilo, não me conformava em ouvir o que tinha na conta de disparates e logo deixava transparecer minha discordância. Usava, para isso, argumentos que me pareciam sólidos e insofismáveis e nem cogitava a hipótese de, com essa atitude, estar criando anticorpos contra mim mesmo. Via aí um meio lícito de firmar conceitos e contribuir para o esclarecimento geral.
Isso, esse clima de altercações e de polêmicas, é coisa do passado; de um passado, aliás, já remoto. A idade – que traz o que muitos chamam de amadurecimento ou sabedoria, e eu prefiro chamar de “quilometragem” – foi, aos poucos, me ensinando a escolher as oportunidades. E hoje, calejado, sou cauteloso e seletivo, não só nos assuntos que me empenho em analisar como no modo sereno com que os enfoco e, em especial, na escolha das pessoas com quem prefiro discuti-los.

Lembro de um amigo, já falecido, que a partir de certo dia, sem motivo aparente, deixou de responder a meu cumprimento. É bem verdade que ele estava doente; sofria de uma moléstia que tem, entre seus desdobramentos, uma eventual mudança de comportamento, atitude e senso crítico, e foi a isso que atribuí seu inesperado e embaraçoso silêncio. Do contrário, como justificar o paradoxo entre a rejeição e os reiterados favores e gentilezas que, até então, dizia me dever? Escudado nessa certeza, convivi amargamente com a perda irreparável.

Um dia, mencionando esse desconforto a um terceiro, ouvi, espantado, o seguinte depoimento:
- Eu sei por quê...
- Você sabe? Então, me diga!
- Ele o acusou de querer ser “dono da verdade”; de que sua palavra sempre tinha de prevalecer; de que nunca dava aos argumentos dos outros o peso que tinham; de que não valorizava o mérito alheio; de que fazia questão cerrada de ser o oráculo de todas as rodinhas; de que pensava dominar todos os saberes...
- Que barbaridade! – exclamei, espantado. – Nunca me imaginei senhor de tantos talentos!
- Mas foi isso que ele me disse...
- Espero que você não pense da mesma forma...
- Eu? De modo algum!
- Ainda bem – respondi, aliviado, embora um tanto perplexo, mas, mesmo assim, insisti:
- Ele, por acaso, se referiu a algum episódio em particular?
- Não... deixe-me ver... sim, agora recordo... falou sobre uma caneta...
- Caneta?
Eu não tinha a mínima idéia do que se tratava. “Que caneta?” E ele prosseguiu:
- Falou de uma caneta que acabara de adquirir e que, orgulhoso, lhe mostrou, certo de que ouviria o mais entusiástico aplauso a seu bom-gosto estético. E que você o esnobou, puxando a sua do bolso e retrucando: “Isto aqui, sim, é uma caneta bonita!”
Fiquei abismado com o que acabava de ouvir. E puxando pela memória com a máxima isenção, tive certeza de que o episódio jamais ocorrera; fora, sem dúvida, produto de outra alucinação provocada pela doença. Mesmo porque, por mais que eu tivesse tal opinião contrária, não seria mal-educado a ponto de agir de modo tão grosseiro, sobretudo diante de um enfermo carente de afeto.
O fato é que a tal quilometragem e a dolorosa experiência com a perda desse amigo se encarregaram de me propiciar mais uma lição de vida que penso ser oportuno expressar assim:
Dentro do possível, escolha suas companhias com base na sintonia de gostos e preferências, mas aprenda a conviver pacificamente com os pequenos desacordos que sempre surgem.
Defenda seus pontos de vista com firmeza e consistência, mas com delicadeza e moderação e, desde que não se trate de questão vital, evite envolver-se em discussões acaloradas.
Conceda a palavra ao interlocutor, respeite sua opinião – e, regra número um – jamais queira parecer o dono da verdade...

Mario Gentil Costa