quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009



BRASIL BARULHENTO
(Entrevista: poluição sonora urbana)

Este artigo é o excerto de uma entrevista dada em 1993, e que não foi publicada com a justificativa, por parte do editor do jornal, de “escassez de espaço”... Passados tantos anos, como o assunto é cada vez mais pertinente e prioritário, resolvi publicá-la eu mesmo.
Só sinto não ter o mesmo número de leitores.

Não há dúvidas de que "o Brasil ainda engatinha em matéria de combate à poluição sonora". Alguns anos atrás, o Rio de Janeiro detinha o "honroso" título de “cidade mais barulhenta do mundo”. O ruído do tráfego, em horas de pique, nas imediações do túnel que liga Botafogo a Copacabana, atingia níveis insuportáveis para os moradores dos prédios que marginavam a avenida de acesso. Hoje, com o crescimento vertiginoso da população e do número de veículos, a situação deve ter se tornado ainda pior.

Não conheço nenhum trabalho científico que tenha estabelecido, nesse aspecto, comparações entre as principais capitais brasileiras, mas suponho que, hoje, nada se compare a São Paulo. A meu ver, a própria topografia dessa cidade favorece a reflexão do som naquela "selva de concreto" em que se transformou. No Rio, pelo menos, há a constante presença do mar para onde o ruído escapa e, até certo ponto, se desvanece.
De uma forma ou de outra, o que diferencia as capitais brasileiras das do resto do mundo é, justamente, a falta de educação do motorista nacional, na minha opinião, o maior "buzinador" do planeta. Brasileiro não pode ver uma buzina. Basta uma momentânea interrupção no trafego, e já aparece, atrás da gente, um “nervosinho” para dar início ao que eu chamaria de "reação de estupidez em cadeia". E é nessas horas que o guarda deveria puxar o seu talonário de multa. Talvez fosse a maneira de coibir esse abuso e educar esses poluidores.
Afora esse aspecto, todavia, não me parece, que Florianópolis seja, proporcionalmente, mais barulhenta do que outras capitais do seu porte. Além de não ser uma cidade industrial, conta, felizmente, com a bênção das baías norte e sul para amortecer o ruído.
Aliás, como conceito geral, vale dizer que, do ponto de vista de saúde pública, no sentido individual, não é o ruído da cidade que causa o maior prejuízo, ao menos no que diz respeito à perda da audição. Não acredito que isso possa deixar alguém surdo, no exato sentido da palavra. A rigor, por mais alto que seja seu nível, sempre se tratará de um fenômeno temporário ou intermitente, que dura segundos ou minutos, como no caso dos exemplos citados. O que causa dano auditivo real e permanente é a continuidade do ruído a que o ser humano se expõe. Além do seu nível em decibéis, é claro.

O ruído urbano excessivo afeta, isso sim, o psiquismo da coletividade. Isso a que chamamos de "progresso" obriga o cidadão a conviver com neurotizantes descargas abertas, marteladas de bate-estacas, britadeiras de asfalto e misturadoras de concreto, buzinas e apitos de toda sorte.

Como se sabe, o ouvido humano suporta, sem danos, ruídos que não ultrapassem 85 decibéis. Alguns pesquisadores são ainda mais rigorosos, estabelecendo o limite em 80 dB. Acima disso, dependendo de fatores individuais, haverá, cedo ou tarde, lesão irreversível. É claro que, com o barulho ambiente, sobe o número de pessoas com problemas precoces, cujas verdadeiras causas estão, entretanto, centradas em certas atividades profissionais.

Os mais atingidos são os operadores de máquinas barulhentas em ambientes confinados, nas oficinas de tecelagem, nas usinas metalúrgicas, nas serralherias, nas marcenarias, nos estaleiros da construção naval, entre os funcionários que lidam nas proximidades de turbinas de aviões, seja na fábrica, seja nos aeroportos. Nesses ambientes, o nível de ruído ultrapassa em muito o aceitável, alcançando, às vezes, cerca de 130 decibéis. Esses profissionais deveriam ser obrigados a usar protetores nos ouvidos. E na verdade o são, mas muitos não usam, ou porque acham incômodo, ou porque a vigilância é, muitas vezes, negligente.

Os empregados em boates de "rock" e outras baladas, que se expõem diariamente ao ruído amplificado e ensurdecedor dos instrumentos de percussão que reflete nas paredes, são algumas das modernas vítimas da poluição sonora veiculadora da surdez, que, sem dúvida, também atinge – em menor grau, é verdade – os freqüentadores habituais.

Na minha experiência, que já vai longa, os jovens que freqüentam esses lugares confessam sistematicamente o zumbido nos ouvidos quando voltam para casa de madrugada. Esse é o primeiro sinal de dano auditivo, que, repetido, como é o caso dos garções que trabalham todas as noites, e sobretudo dos músicos, que ficam mais perto das fontes de ruído, certamente redundará em perda auditiva progressiva e irreversível.
Num segundo estágio, a pessoa começa a notar que deixa de entender certas palavras no correr de um conversação normal. A essa altura, o zumbido, que era passageiro, torna-se constante e de tonalidade aguda, mas ainda é reversível, se for removida a causa. Caso contrário, sobrevirá o terceiro estágio, já de perda auditiva irreversível para certos tipos de som e progressivo prejuízo no rendimento da conversação, aquele em que o paciente se queixa de que escuta mas não entende tudo o que escuta, como se o interlocutor estivesse falando numa língua estranha. O quarto estágio é o da surdez manifesta e progressiva, podendo alcançar o nível que chamamos de surdez profunda.

Já tive, no consultório, casos de deficiência auditiva em jovens que freqüentam tais ambientes. Aliás, esta é uma ótima oportunidade para alertar os frequentadores dos chamados 'trios-elétricos', alguns dos quais ultrapassam os 115 dB. O mesmo vale para os usuários de fones de ouvido acoplados a essas poderosas fontes geradoras de música de percussão, eufemisticamente chamadas de MP3. Se não quiserem ficar surdos aos quarenta anos de idade, ou antes disso, tratem de "curtir o som" reduzindo o volume. Caso contrário, não há remédio: envelhecerão totalmente surdos. Esta é uma verdade definitiva, um axioma.

É fato que nem todas as pessoas reagem de forma semelhante ao estresse do ruído. Há as que suportam um pouco mais, sem maiores conseqüências. Mas acima de certos limites, ninguém escapa. É inexorável. Dir-se-ia que quanto maior a idade, maior o dano. A existência concomitante de fatores predisponentes, como hipertensão arterial, aterosclerose, diabetes – doenças essas que, direta ou indiretamente, comprometem a circulação e a oxigenação dos tecidos e das células – acelera indiscutivelmente o processo. Determinado grau de fadiga crônica, maus hábitos higiênico-alimentares, tensões e sobrecargas de um modo geral, uso de drogas, sejam quais forem, igualmente contribuem para o agravamento do prognóstico.

Vejam só: num raciocínio comparativo, os olhos foram feitos para a luz; e os ouvidos, para o som. Qual é a maior fonte de luz? O Sol. Pois bem, se ficarmos olhando diretamente para ele sem proteção, ficaremos cegos. Ambos, luz e som, são formas de energia. Todos sabem disso. Da mesma forma, ficaremos surdos se não nos protegermos contra o excesso de som. Isso é óbvio! E tão fácil entender!... Mas tão poucos acreditam!...

Os jovens, principalmente, que se julgam imunes, chegam a esboçar aquele sorrisinho de descrença, como se nós, médicos, estivéssemos contando lorotas. Aliás, esta que aí está é a geração mais barulhenta que já pisou o planeta. Só imagino como será a próxima...

Além da perda auditiva propriamente dita, que é o dano mais imediato, a poluição sonora agride o corpo humano como um todo, alterando seu equilíbrio orgânico – a "homeostase" – e atuando diretamente sobre o sistema nervoso central e a circulação sangüínea, provocando vaso-constrição e favorecendo o aumento da pressão arterial, através de uma maior descarga de adrenalina circulante. Taquicardia, alterações do ritmo intestinal, dores de cabeça dos mais diversos tipos, ansiedade, irritabilidade, insônia, baixa do rendimento intelectual, fadiga no trabalho e conseqüente aumento do risco de acidentes no exercício de funções que exijam reflexos rápidos e imediatos.

As crianças, da mesma forma que os adultos, estão sujeitas a estresses semelhantes, que repercutem mais sob a forma de irritabilidade, agressividade, inquietude, sono irregular, distúrbios do apetite e do funcionamento intestinal. Na medida em que o ruído ultrapasse certos limites, pode-se prever, até mesmo, déficit ponderal e estatural, retardo no rendimento escolar e dificuldades de relacionamento social e doméstico.

Existem leis e normas técnicas para a redução do ruído; só que nem sempre são cumpridas por tornarem o investimento inviável em termos de custo operacional. E nós sabemos que, infelizmente, no mundo moderno, o que preside todas as iniciativas comerciais e industriais é o famigerado binômio custo/benefício (ou investimento/retorno), sem o qual nada se faz.
Em suma, o objetivo desta conversa é chamar a atenção dos pais e interessados. Do ponto de vista técnico, o Brasil conta com engenheiros especialistas em problemas acústicos e médicos capacitados a desenvolver a profilaxia dos danos causados pelo ruído. A propósito, certas máquinas de grande porte produzem tanto ruído, que sua manipulação exige controle remoto, ficando o operador protegido em cabinas a prova de som. Há leis que obrigam a uma interrupção de dez minutos a cada hora de trabalho, com a finalidade de descansar o ouvido e quebrar a continuidade do estresse sonoro. Outras regulamentam proporcionalmente a carga horária. Mas não creio que sejam cumpridas à risca. Pelo menos no Brasil, onde, a começar de cima, não se leva quase nada a sério...

É bem verdade que não se trata de uma doença de conseqüências fatais diretas. Pelo menos, não tenho conhecimento de nenhum caso de morte por poluição sonora. Mas é admissível que, além da surdez profunda, as outras alterações orgânicas advindas do excesso de ruído, levando ao estresse crônico, predisponham o indivíduo à aquisição de males imprevisíveis cujo resultado, a longo prazo, poderá reduzir sua perspectiva de vida, por torná-lo mais susceptível a uma variada gama de doenças crônicas incuráveis. Dessa forma, sim... a poluição sonora pode matar...

Mario Gentil Costa
magenco@terra.com.br